27/07/2017

MAFALDA ANJOS

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Ide mas é dormir

Uma Humanidade olheirenta começa a acordar para a autoevidência de que, surpresa!, os humanos precisam mesmo de dormir. O que em tempos foi visto como um luxo, é hoje apontado como uma louvável competência

Grande parte das primeiras páginas da carta que o velho imperador romano escreve ao seu filho Marco Aurélio, na obra-prima Memórias de Adriano, são dedicadas a um assunto prosaico: o sono. Marguerite Yourcenar bem sabia, muito antes dos inúmeros estudos científicos que hoje o comprovam, que este era um tema crucial quando se faz o balanço de uma vida em forma de conselhos para um jovem sucessor. O sono, esse “grande restaurador com poderes divinos” que nos faz “deixar de existir”, é muito mais essencial ao Homem do que ele gosta de acreditar. Como diz Yourcenar, “se pensamos tão pouco num fenómeno que absorve pelo menos um terço de toda a vida é porque é necessária uma certa modéstia para apreciar as suas bondades”.

“Adormecidos, Caio Calígula e o justo Aristides equivalem-se; eu renuncio aos meus vãos e importantes privilégios; deixo de me distinguir do guarda negro que dorme atravessado junta da minha porta”, escreve Adriano. É pois assim num exercício de “certa modéstia” que hoje este espaço nobre da revista não fala das “fragilidades inadmissíveis” do nosso país (e que são tantas, Senhores!), mas sobre o ato mais banal, mundano e unificador da Humanidade que é dormir.

O meu ponto é que o sono, ou melhor, a falta dele, se tornou um problema global de saúde pública. Dormimos pouco – muito menos do que as oito horas mínimas recomendadas por dia – e dormimos mal. Há poucas semanas, um título chamou-me a atenção. “Dormir é o novo símbolo de status”, provocava o New York Times ao defender a tese de que o sono é, nos dias que correm, uma medida de sucesso e uma espécie de competência a ser cultivada a todo o custo. A forma como as sociedades olham para este momento em que, nas sábias palavras de Adriano, “nos abandonamos conscientemente a esta bem-aventurada inconsciência” diz muito sobre o l’air du temps.

 Nas últimas décadas, a cultura yuppie dos anos 80 e um certo neoliberalismo, que se arrastou por este século dentro, fizeram-nos acreditar que dormir era uma perda de tempo: quem chega ao topo tem de abdicar desses momentos de inação em prol de mais horas a trabalhar, a cultivar-se e a fazer coisas. Era bem visto dizer que se dormia pouco, e que se vivia feliz com isso movido a baldes de cafés e Red Bulls enquanto se ouvia o hit de Bon Jovi “I’ll sleep when I’m dead”.

Com os smartphones e a conectividade 24h por dia, a coisa piorou: mais solicitações e menos tempo passado no doce vale dos lençóis. Esgotamentos ou burnouts tratavam-se com remédios, e siga para bingo.

Só que o que em tempos foi visto como um luxo, que todos os bem-sucedidos adoravam dizer que não se podiam oferecer, é hoje apontado como uma louvável “skill”, na irritante terminologia daquele management que adora inglesismos. Dezenas de estudos científicos atestaram nos últimos anos que o sono é o melhor reparador do organismo e condição essencial para a nossa saúde e bem-estar geral. Crucial não só para fortalecer o nosso sistema imunitário como para combater o envelhecimento, o stresse e a depressão e estimular a nossa memória, função cognitiva, produtividade, criatividade e inteligência emocional. Entendamo-nos: a falta de sono pode mesmo ser uma questão de vida ou de morte.

E assim, uma Humanidade olheirenta começa a acordar para a autoevidência de que, surpresa!, os humanos precisam mesmo de dormir. Hoje brotam como cogumelos centros de sono, estúdios de meditação, apps e gadgets criados em 
Silicon Valley, livros e especialistas vários para tratar destes distúrbios e até programas de remuneração de recursos humanos que pagam pelas horas dormidas, enquanto os financeiros calculam os danos causados à economia – cerca de 411 mil milhões de euros às empresas norte-americanas, 2,28% do PIB do EUA.

Bocejo… Estamos tão cansados de estar cansados. Venham as férias para fazer restart e meter os sonos em dia. De preferência, de vez.

IN "VISÃO"
22/07/17

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